Você sabia que Desde 2010, a Unesco reconhece a refeição gourmet francesa como patrimônio imaterial da humanidade? Voilà!
A intenção da honraria é preservar o evento familiar que demarca grandes momentos da vida: nascimentos, comunhões, casamentos, aniversários, resultados de provas… O comunicado oficial atesta “que a comunidade francesa coloca a refeição gastronômica no centro da celebração da vida”. Mais que justificado.
De saída, os hábitos franceses à mesa sinalizam o apreço pelo convívio, uma vez que a sucessão de iguarias consome boa fatia de tempo. De acordo com o chef Alain Poletto, do Bistrot de Paris, em São Paulo, o menu original se estende pelas seguintes etapas: couvert ou amuse bouche (tira-gosto), sendo o pão indispensável; entrada (salada, legumes crus temperados, charcuteries – frios); prato principal (proteína: carne ou peixe, mais acompanhamento: legumes, carboidratos); plateau de fromage (tábua de queijos) e, por fim, frutas ou sobremesa. Ufa!
A musse e o crème brûlée (creme de baunilha caramelizada) são os queridinhos por aqui, mas a tradição de pâtisserie (confeitaria) vai muito além deles. A lista de doces tradicio- nais inclui éclair (bomba), merengue, bavaroise (espécie de creme aromatizado e engrossado com gelatina), parfait (pri- mo do sorvete), entre outros. “As sobremesas francesas são leves e suas receitas, à base de creme de leite. Por isso, são bem menos açucaradas em comparação com as brasileiras”, comenta a chef Débora Tirabasso, proprietária da confeitaria Jolie, em São Paulo.
Um aspecto fundamental de todo esse ritual é a harmonização das bebidas. Do contrário, a degustação fica comprometida. Embaralhar sabores é um sacrilégio condenado pelos costumes. Na dúvida, siga a regra de ouro: carnes pedem vinho tinto; aves e peixes, branco. “Para acompanhar sobremesas, os indicados são vinhos da região de Sauter- nes, adocicados, ou champanhes”, recomenda Débora.
E, claro, permeando os encontros, prevalece a satisfação de saborear alimentos e ingredientes frescos. Basta lembrar que os franceses abominam o fast-food. Baixa qualidade alimentar e excessos são malvistos. Apesar do cardápio avantajado, as porções devem ser contidas. Afinal, o barato é degus- tar cada uma de maneira que se chegue ao final do banquete com leveza. “A refeição gourmet francesa preza o equilíbrio e a quantidade certa consumida durante as três refeições principais, além da variedade dos produtos para cobrir as necessidades alimentares e a escolha de ingredientes frescos, com sabor e, sempre que possível, fabricados artesanalmente”, detalha Poletto.
“Os franceses apreciam alimentos frescos e regionais, além do convívio com familiares e amigos ao redor da mesa. É preciso vagar para saborear a sucessão de pratos que compõem o menu de uma refeição gourmet tradicional.“
Manancial de sabores
Outra característica marcante dessa escola, segundo o chef Tiago Caparroz, proprietário do Flor de Sal Bistrô, com unidades em Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, é a inventividade. “A cozinha francesa se pauta pelo uso dos alimentos por completo, transformando o que em outras culturas é descartado em composições fantásticas”, destaca. No entanto, a culinária com sotaque francês não se dirige somente aos paladares sofisticados. Apesar de corriqueira, essa leitura passa longe da realidade, segundo Caparroz. “Bistrô é um restaurante de tradição com cozinha caseira ou do cotidiano dos franceses. É justamente isso que bus- camos no Flor de Sal por meio de releituras dos clássicos e das receitas de bistrô, usando as melhores técnicas aliadas aos melhores ingredientes”, esclarece o chef.
Os pratos típicos são diversos. Impossível eleger o tal, como a feijoada, no caso brasileiro. As iguarias, em geral, estão ligadas à localidade de origem. Não dá para separar uma coisa da outra. “Cada região apresenta especificidades geográficas e climáticas. Por isso, cada uma gera seu produto ideal, único e exclusivo, além de valorizar o savoir-faire [conhecimento transmitido de geração em geração no interior das famílias] do artesão”, explica Poletto.
Por exemplo: a Borgonha é reconhecida pelos bons vinhos tintos e pela nobre carne bovina da raça charolês. O famoso fondue vem da região dos Alpes franceses, reduto de produção leiteira de altíssima qualidade. Resultado: proliferação de queijos apreciados em todas as freguesias, a exemplo de reblochon, morbier, abondance. O cassoulet (mistura de feijão branco e carne) é proveniente da região de Toulouse, sede da maior produção de pato do país. Já o gratin dauphinois (gratinado que leva batata e creme) nasceu na região do Dauphiné, fornecedora de excelente queijo para gratinar e de batatas de qualidade.
A região de Marselha, no Mediterrâneo, por sua vez, é o berço do bouillabaisse (guisado ou sopa à base de frutos do mar), ao passo que o pot au feu (cozido de carne bovina com legumes) é típico das regiões frias e mais pobres. Nenhuma dessas delícias, entretanto, ganharia fama internacional não fosse a “personalidade” dos temperos e dos ingredientes selecionados com capricho e critério. “O que faz o sucesso dessas iguarias é a qualidade das matérias-primas. De novo, se cada região tem suas próprias receitas, é porque dispõe de todas as condições para elaborar o melhor produto. Por essa razão, a cozinha francesa não sai de moda e integra um patrimônio bem protegido”, enfatiza Poletto.
Texto: Raphaela de Campos Mello